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ÉRAMOS DOIS

Sentamos à mesa. Ele e eu. Eu tinha feito uma canja porque ele andava com uma tosse seca que não curava. - Tem um poema de um escritor português que fala sobre quando todos sentavam a mesa e depois quando todos vão embora. - Hm, Sei. - Eu o vi em Curitiba, ele até autografou o livro pra mim. Quer que eu te leia o poema? - Outro dia você lê. Ficamos ali em silêncio. Eu bebia uma cerveja, ele um copo água. Entre uma tosse e outra, eu falei: - Você foi ao médico? Quer que eu te leve para ver essa tosse amanha? - Fui hoje. Até tomei injeção. Logo eu melhoro. - Tem que cuidar hein. Tá com uma tosse muito feia. Eu ouço sua tosse de longe. Enquanto ele raspava o prato, soltou: - Eu sinto falta da sua mãe. Minha cara não disfarçou o susto que levei. Nunca tínhamos falado sobre isso, muito menos assim, na mesa do jantar. Minha mãe tinha morrido há quase sete anos de uma doença rápida que nos deu uma rasteira gigantesca. Falar sobre ela ou sobre a morte dela nunca foi tabu pra mim porque vivi a

Ritual

Sinto cheiro de chuva mas lá fora não cai gota alguma  Me bate vontade de dizer o que não foi dito, e deixo agora, por escrito  Tenho lembranças de dias incríveis A alma plácida, branda, feito as primeiras horas da manhã Torci para que o som das nossas vozes fossem uníssonas mas o abrupto tempo da vida barrou, faz parte, ninguém errou Eu vejo a lindeza que fomos, mesmo sem despedidas Não foi preciso A vida sabe o que faz da gente Um dia descobrimos, de repente.

Meu pequeno coração frio

Já perdi as contas de quantas vezes insisti em lugares que não posso habitar. Em como meu coração se partiu nas tentativas frustradas de estar onde você está.  Sim, eu fui boba e fiz joguinho com você. Eu fiz planos e promessas que nunca cumpri. Eu quase te ganhei.  Desperdicei a chance de te ter. Você tão livre. Você voou e agora aterriza em outro mar. Não o nosso agitado mar. Meu coração está frio.  Pensei em você o dia inteiro.  Procurei me distrai com outras pessoas. Não consegui. Posso sentir o gosto da sua boca naqueles beijos que não demos. Minha alma está triste.  Você está feliz. Eu sei que você pensa em mim mas sou só uma lembrança de um tempo que passou. Meu corpo queria o seu.   Queria te sentir. Te ouvir gemer enquanto sussurro nos seus ouvidos. Te olhar enquanto você despeja o gozo quente. Seu corpo está entregue em outro. Seus olhos descansam em outros olhos.  Sinto sua calma daqui e agora sou eu que remanesço em solidão.  Eu disse que iria te es

Um profissional feliz não quer guerra com ninguém.

Em Setembro de 2018 pedi demissão e sai do emprego. Há algum tempo eu fazia as atividades com um tanto de frustração. Tudo que eu fazia não via sentido e eu decidi, em um impulso inesperado, nadar em outros mares. Neste tempo, revivi todo meu percurso profissional. A escolha do curso, a faculdade, os estágios e empregos. Vestia o padrão porque achava que era minha "caixa" quando no fundo, aquilo nunca me serviu. Sei que falhei por não ter prestado atenção aos meus sinais e os alertas disparados mas isso também, de alguma forma, faz parte da experiência. Sei que muitos profissionais sentem que não estão produtivos e acreditam ser uma fase que logo passará. Isso eu mesma vivi. Creio também que somos seres adaptáveis mas hoje compreendo que adaptação é o oposto de anulação. Tenha lido muito sobre como não minar a criatividade dos profissionais e entender que, como indivíduos, não podemos ser colocados em uma única caixa, no velho modelo - padrão. Essa geração já modif

Por amor ao debate: é possível mesmo uma escola sem partido?

Estou no 1º ano do curso de teologia aqui da minha cidade. É um curso que sempre me despertou bastante curiosidade aliada a imensidão de questionamentos que, por ventura, ninguém conseguia sanar. A Igreja Católica é a mantenedora e idealizadora do curso e são os padres das comunidades que ministram as matérias. Pois bem. Essa semana tivemos uma aula de Introdução à Bíblia com um padre substituto - por hábito não chamamos os padres de professores - e não conhecíamos sua metodologia para abordar a matéria levando em conta que o padre anterior era bastante catedrático e querido pela turma. Eis que em um determinado momento, dentro do contexto, o Padre emitiu uma opinião sobre a Renovação Carismática e a teologia da libertação. Deixou claro seu posicionamento contrário e foi bastante crítico nas suas ponderações a tal ponto de um aluno questionar se não era verdade que o Papa Francisco reconhecia essas vertentes. Prontamente respondeu: "Não há qualquer documento da igreja q
Minha mãe dobrava os lençóis no meu quarto quando entrei e ouvi seu choro baixinho. Fiquei em silêncio por um tempo e ainda reticente a chamei: “Mãe”. Virou-se rapidamente e com os olhos cheios de lágrimas, estendeu-me a mão e me abraçou. Ficamos ali até que o seu choro copioso se acalmasse.  No auge dos meus 14 anos, eu pouco entendia a vida, quem dirá a morte. Minha avó Mistarda falecera uns dias antes e eu observava a tristeza quieta de minha mãe, embora só a tenha visto c horar neste dia. Meus pais pouco falavam sobre a morte e se falavam, nada me lembro. A verdade é que também tinham suas dificuldades em lidar com a instantânea e definitiva ausência de um ente querido. Não tenho lembrança de ver meu pai chorar quando minha avó Maria morreu mesmo sabendo que a morte precoce dela fora bastante dolorosa. Eu sei disso porque ainda hoje minhas tias relembram a morte dela com aquele choro engasgado no peito. Não há receita que cure a morte de uma mãe e isso eu mesma vivi. Mamãe morreu n

Desencontros

Tínhamos marcado de nos encontrar no final de semana. Conseguimos conciliar as agendas e compramos ingressos para o mesmo festival. Seria nosso primeiro encontro, depois do “ match ” e das conversas onlines, esse parecia ser o momento perfeito. Já tínhamos feito outras tentativas mas todas frustradas, e eu convicta, pensava: uma hora vai dar certo. A conexão que tínhamos me assustava e por algumas vezes eu hesitei em me aproximar. Inclusive falávamos dessa nossa incapacidade de nos relacionar, dos medos de não corresponder as expectativas, tínhamos de fato muito em comum. Era alguém que eu gostaria de conhecer e eu achava que estava pronta. Logo que cheguei ao show fiquei atenta e confesso que a cerveja me encorajava. Entre uma banda e outra, as pessoas circulavam e eu continuava a busca. Não insistimos em marcar um lugar para nos vermos, afinal, mesmo no meio da multidão, fatalmente nos veríamos nos shows das nossas bandas preferidas. De alguma forma, queria muito que isso se dess